segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sol

quando minha mãe teve um derrame um derrame também se instalou em todos nós foram muitos dias virados no hospital sem deixá-la um minuto sozinha e quando ela retornou para casa as funções foram todas invertidas mãe filha filho marido esposa e a vida foi se acomodando em redor dela e as funções foram se acomodando em nós solidificando-se 3 anos 4 anos 5 anos na cama café da manhã pronto biA banheiro prontO almoço biA banheiro prontO café da tarde biA banheiro prontO jantar prontO biA banheiro prontO dormir biA banheiro prontO olhares mudos movimento mecânicos 6 anos 7 anos biA

- água
- mãe, olha...
- ... ... ... professora?
- é, sou professora, passei no concurso público da prefeitura, me formei na USP ano passado...( e me separei, fiz análise por um ano, arrumei um namorado, a Sophia já saiu da creche ... calei-me... engoli a seco tudo que se perdeu no cotidiano)

       Ela me estendeu a mão:
- Parabéns!
       
      Coloquei-a na cadeira de rodas.
- Vamos tomar sol!

domingo, 25 de julho de 2010

Casamento

Casa. CasaMente. Casualmente. Casualidade. Caso. Acaso. Casa.

           A Casa onde morei por 7 anos foi a casa onde minha filha nasceu. Foi onde meu marido tornou-se meu filho e depois meu ex-marido. Casei-me com aquela Casa. Meu casamento começou cheio de sonhos.
           Queria contruir mais janelas, ter uma cozinha maior, uma sala de estudos, uma churrasqueira na varanda, uma luminária externa.... muitos projetos. Mas a Casa foi se acomodando. Eu fui me acomodando.   Os cheiros eram os mesmos. As cores, as mesmas. Poucas janelas. Pouco sol.
          Não conhecia esse lado devagar dela. Tão sem iniciativa. Não imaginei que simplesmente pararia no tempo. Também, nos conhecemos tão repentinamente. Foram poucos encontros e eu já dizia: é minha! Como podia saber?
          Faz um mês que me separei dela.
          Sinto saudades daquela Casa que poderia ter sido. Com mais janelas, uma cozinha maior, uma sala de estudos, uma churrasqueira na varanda, uma luminária externa....muito sol...

domingo, 16 de agosto de 2009

Amar é...

limpar o cocô dos bichinhos, dizia o meu padrasto.

Dar comida, água, brincar, sim... mas amor mesmo, é limpar a sujeira que o cachorro e o gato fazem.

Nosso cachorro fazia cocô andando em círculos! Ele ia para o quintal, cheirava o lugar certo, e começava a dar voltinhas em torno dele mesmo, e as bolinhas de cocô iam caindo, fazendo um círculo em volta dele.

A areia do gato era areia normal, dessas que se usa em construção. Meu padrasto peneirava e depois lavava a areia. Muito mais ecologicamente correto do que essas areias que eu compro hoje em dia.

Pois é. Mamãe teve um derrame e ficou sem movimentos na perna e no braço esquerdos. Nada.
No hospital, revezávamos, entre meu padrasto, meu irmão e eu, de modo que ela não ficou sozinha um segundo sequer.

Nós a banhamos, demos comida e, limpamos seu cocô.

Quando ela retornou para casa teve de usar fralda geriátrica. No seu rosto, expressões de incompreensão e inconformismo. Meu pai, ainda que irritado pelo cansaço, estava lá, na cozinha, e na fralda.
Eu procurava poupá-los. A ele, de ver sua esposa em situação tão degradante, e a ela, de ser vista em situação tão degradante.

Entendia, aos poucos, porque meu padrasto dizia que amar não era apenas dar comida e brincar, era principalmente, limpar o cocô...

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Mãe

De um cansaço insano nasce uma fúria e uma indisposição sem tamanhos.
O soar do apito que lhe chama para levar a mãe ao banheiro ecoa, multiplica-se, reverbera em seu corpo que se levanta automaticamente, desce as escadas e chega ao quarto que fica próximo a cozinha.
Seus olhos não encaram os da mãe, por vergonha. Vergonha de estar cansada e irritada. Vergonha de não poder dar-lhe mais conforto ou atenção.
Seus olhos não encaram os da mãe por medo, é um espelho, ela se vê ali. Incapaz, frágil, humilhada.
68 anos, dois derrames e uma queda deixaram-na 70% dependente.
32 anos, dois derrames e uma queda deixaram-na 70% dependente.